Descabido pretender-se penalizar o agente em razão da situação de desemprego que lhe aflige. Valorar negativamente a conduta do agente nessas circunstâncias consistiria verdadeira (e perversa!) valoração penal negativa da própria condição de vulnerabilidade do agente, alijado de emprego formal. De outro lado, ainda nas situações nas quais o agente faz a opção livre e consciente de não desenvolver nenhuma atividade laboral (fazendo disso seu estilo de vida), a valoração negativa de tal fato constituiria inaceitável reprovação penal ao seu estilo de vida, atentando contra os mais basilares fundamentos do Estado Democrático de Direito, sobremaneira, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, III, CRFB).
A conduta social do agente é uma das circunstâncias judiciais elencadas no artigo 59, caput, do Código Penal, sendo de enorme repercussão especialmente no que pertine à aplicação da pena (escolha da pena dentre as cominadas; dosimetria da pena privativa de liberdade; dosimetria da pena de multa; fixação do regime inicial de cumprimento da pena).
Tal vetor liga-se ao comportamento do indivíduo no interior do grupo social a que pertence - família, vizinhança, escola, trabalho etc -, destacando-se nesse aspecto as suas relações intersubjetivas, bem como - e principalmente - a imagem que tais relações projetam nos referidos meios sociais. No dizer do professor Ruy Rosado de Aguiar Júnior “a conduta social consiste no modo pelo qual o agente exerceu os papéis que lhe foram reservados na sociedade”[1].
Frequentemente é do contexto da prova oral produzida em juízo que exsurgem os dados concretos dos quais se vale o julgador para a valoração desta vetorial da pena. Isso porque é justamente do relato dos familiares, dos vizinhos, dos colegas de atividade profissional é que se formará o juízo acerca do modo pelo qual o réu exerceu seus diferentes papeis enquanto sujeito no meio social.
É certo que muitos autores desenvolvem severa crítica quanto à adequação da valoração da conduta social do agente enquanto fator para a dosimetria de sua pena, não sendo poucos os que consideram tal vetorial como não recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Isso porque ao valorar a conduta social do agente estar-se-ia atribuindo valor penalizante ao modo pelo qual este conduz sua vida e não em razão do evento fático-delituoso pela qual está sendo objetivamente condenado. Sobre o tema recomendo a leitura de Salo de Carvalho [2] e Amilton Amilton Bueno de Carvalho [3].
O fato, porém, é que de acordo com a orientação doutrinária e jurisprudencial ora predominantes a valoração da dita vetorial não somente é tida como adequada como também indispensável na esteira do disposto pelo próprio artigo 59 do Código Penal.
Situada a mencionada circunstância, cumpre passar a um aspecto mais restrito, qual seja, a possibilidade de valorar-se negativamente a conduta social do agente porque "não trabalha" ou, pior, porque "não tem vinculo de trabalho com carteira assinada". Eis o objeto central da presente manifestação.
A questão encontra-se muito bem colocada concretamente na jurisprudência, existindo ao menos duas decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto:
HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA. ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO. CONTINUIDADE DELITIVA. PENA-BASE. FIXAÇÃO ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CULPABILIDADE. PREMEDITAÇÃO. MAIOR REPROVABILIDADE DA CONDUTA. FUNDAMENTOS CONCRETOS E IDÔNEOS. INQUÉRITOS POLICIAIS E AÇÕES PENAIS SEM CERTIFICAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO. SOPESAMENTO NA PRIMEIRA ETAPA DA DOSIMETRIA COMO MAUS ANTECEDENTES. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 444 DESTE STJ. CONDUTA SOCIAL. DESEMPREGO. ARGUMENTO INIDÔNEO. CONSEQUÊNCIAS DO DELITO. PREJUÍZO DAS VÍTIMAS. POSSIBILIDADE. GRAVE AMEAÇA A CRIANÇA. DESFAVORABILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. CONCURSO DE AGENTES. CAUSA DE ESPECIAL AUMENTO. ANÁLISE NA PRIMEIRA FASE. ILEGALIDADE. OFENSA AO SISTEMA TRIFÁSICO. CONSTRANGIMENTO EM PARTE EVIDENCIADO. SANÇÃO REDIMENSIONADA. FIXAÇÃO DA REPRIMENDA NO MÍNIMO LEGAL. DESCABIMENTO. NEGATIVIDADE DE ALGUMAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. 1. Não há falar em constrangimento ilegal na exasperação da pena decorrente da culpabilidade acentuada do agente, porquanto a premeditação, ao contrário do dolo de ímpeto, está a apontar uma conduta mais censurável, diante do planejamento antecipado da ação criminosa, mostrando-se justificada, portanto, a elevação da pena-base sob esse argumento. 2. Consoante orientação já sedimentada nesta Corte Superior, inquéritos policiais ou ações penais sem certificação do trânsito em julgado não podem ser levados à consideração de maus antecedentes para a elevação da pena-base, em obediência ao princípio da presunção de não-culpabilidade. Exegese da Súmula 444 deste STJ. 3. O fato de o paciente não trabalhar, por si só, não evidencia a negatividade da circunstância judicial da conduta social, tendo em vista que a falta de emprego, diante da realidade social brasileira, é infortúnio e não algo tencionado. 4. Havendo suficiente fundamentação quanto às consequências do delito para as vítimas, que sofreram diversos prejuízos e transtornos em razão dos crimes praticados pelo acusado, não há que se falar em ilegalidade da sentença na parte em que aumentou a pena-base em razão da desfavorabilidade dessa circunstância judicial, nem do aresto que a manteve nesse ponto. 5. O fato de uma das vítimas ser criança e ter sido gravemente ameaçada de morte, justifica maior elevação na reprimenda básica, pois desfavoráveis as circunstâncias do crime. 6. Ofende ao sistema trifásico de aplicação da pena e às regras penalmente existentes o édito condenatório que leva em consideração a majorante legal do concurso de pessoas para elevar a sanção na primeira etapa da dosimetria, a título de circunstâncias desfavoráveis do delito. 7. Remanescendo circunstâncias judiciais negativas, devidamente justificadas na sentença, não há como fixar a sanção básica em seu mínimo legal. 8. Habeas corpus parcialmente concedido para reduzir a pena-base imposta ao paciente, tornando a sanção definitiva em 7 (sete) anos, 9 (nove) meses e 10 (dez) dias de reclusão e ao pagamento de 53 (cinquenta e três) dias-multa, mantidos, no mais, a sentença condenatória e o acórdão objurgado.(STJ - HC: 124063 MS 2008/0278432-4, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 17/06/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/06/2010)
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DOSIMETRIA. FIXAÇÃO ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CULPABILIDADE. CONSIDERAÇÃO DAQUELA PRÓPRIA DO TIPO.INVIABILIDADE. AÇÃO PENAL SEM CERTIFICAÇÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO. SOPESAMENTO NA PRIMEIRA ETAPA DA DOSIMETRIA COMO MAUS ANTECEDENTES.IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 444 DESTE STJ. CONDUTA SOCIAL E PERSONALIDADE. DESEMPREGO. ARGUMENTO INIDÔNEO. DESFAVORABILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. ELEMENTOS CONCRETOS. CONSTRANGIMENTO EM PARTE EVIDENCIADO. SANÇÃO REDIMENSIONADA. FIXAÇÃO DA REPRIMENDA NO MÍNIMO LEGAL. DESCABIMENTO. ORDEM CONCEDIDA EM PARTE. 1. Mostra-se inviável considerar como desfavorável ao agente circunstância inerente à culpabilidade em sentido estrito, a qual é elemento integrante da estrutura do crime, em sua concepção tripartida. 2. Consoante orientação já sedimentada nesta Corte Superior,inquéritos policiais ou ações penais sem certificação do trânsito em julgado não podem ser levados à consideração de maus antecedentes para a elevação da pena-base, em obediência ao princípio da presunção de não-culpabilidade. Exegese da Súmula 444 deste STJ. 3. O fato de o paciente não trabalhar, por si só, não evidencia a negatividade das circunstâncias judiciais da conduta social e da personalidade, tendo em vista que a falta de emprego, diante da realidade social brasileira, é infortúnio, e não algo tencionado. 4. Considerando que o delito foi praticado próximo a várias pessoas,colocando em risco também a vida de terceiros, justificada está a maior elevação na reprimenda básica, pois desfavoráveis as circunstâncias do crime. 5. Remanescendo circunstância judicial negativa, devidamente justificada na sentença, não há como fixar a sanção básica em seu mínimo legal, como pretendido. 6. Ordem parcialmente concedida para reduzir a pena-base imposta ao paciente, tornando a sua reprimenda definitiva em 13 (treze) anos de reclusão, mantidos, no mais, a sentença condenatória e o acórdão objurgado.(STJ - HC: 120154 MS 2008/0247257-2, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 16/12/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/02/2011)
Com efeito, conforme as emanações jurisprudenciais acima registradas (e tratam-se das únicas decisões relevantes que encontramos acerca da matéria) descabido pretender-se penalizar o agente em razão da situação de penúria e desgraça em que se encontra, face à situação de desemprego que lhe aflige.
Tal situação de infortúnio, aliás, atinge grande parte da população, a qual se encontra submetida ao desemprego, ao subemprego e ao exercício de atividades informais à título precário ("bicos") aos quais se submetem os trabalhadores ante à absoluta necessidade de prover seu sustento e o de suas famílias.
Outrossim, necessário ponderar que não são raras as situações nas quais nem mesmo oportunidades de exercício de atividade laboral de caráter precaríssimo se apresentam ao agente, especialmente em se tratando de pessoas com pouca qualificação ou, pior ainda, egressas do sistema carcerário ("portadoras do estigma da prisão").
Valorar negativamente a conduta do agente nessas circunstâncias, portanto, consistiria verdadeira (e perversa!) valoração penal negativa da própria condição de vulnerabilidade do agente, alijado de emprego formal.
E nesse ponto um proceder inaceitável, eis que a vulnerabilidade do agente é, pelo contrário, ensejadora inclusive de menor reprovação à sua conduta. Afinal, é concretamente menos reprovável a conduta do indivíduo que sem oportunidade de emprego formal, comete um delito para fins de prover seu sustento e o de sua família, em contraste com o agir de um indivíduo possuidor de toda proteção, orientação e meios, o qual, por absoluta futilidade e vilania, opta por praticar um fato delituoso.
De outro lado, ainda nas situações nas quais o agente faz a opção livre e consciente de não desenvolver nenhuma atividade laboral (fazendo disso seu estilo de vida), a valoração negativa de tal fato constituiria inaceitável reprovação penal ao seu estilo de vida, sua forma de ser no mundo.
E tal, evidentemente, atentaria contra os mais basilares fundamentos do Estado Democrático de Direito, sobremaneira, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, III, CRFB).
Tratar-se-ia de expressão perversa do direito penal do autor, punindo-se o agente pelo que ele é, pela forma segundo a qual conduz sua vida, e não pelo fato criminoso o qual objetivamente praticou.
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[1] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aplicação da Pena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p.73.
[2] CARVALHO, Salo. Leituras Constitucionais do Sistema Penal Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
[3] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002.