Pondera-se que a novel legislação não passa da demagógica expressão de um direito penal simbólico que de um lado não dá real enfrentamento a questão a que se propõe nem aprimora a proteção aos bens jurídicos que visa tutelar (reprimir e prevenir a prática de crimes violentos contra agentes das forças de segurança e seus familiares); e, de outro, permite a ampliação descontrolada do sistema punitivo, franqueando uma abertura muito ampla para o agravamento de penas e à restrição de garantias.
- Uma introdução (advertência) que deve ser lida
O presente texto visa estabelecer algumas ponderações críticas à Lei 13.142/2015. Tais ponderações têm por premissa uma perspectiva de que se de um lado o direito penal deve servir à proteção de bens jurídicos essenciais, de outro deve representar uma barreira de proteção à sociedade em face do poder punitivo (nessa perspectiva o Código Penal deveria ser lido como um código de liberdade do cidadão, limitando as hipóteses nas quais o Estado pode impor sua violência ao cidadão).
Nesse sentido, temos que a Lei 13.142/2015 viola ambas as perspectivas do Direito Penal.
De um lado impõe um incremento desnecessário de poder punitivo para situações fáticas que já se encontravam perfeitamente abarcadas pela redação originária do §2.º do artigo 121 do Código Penal. Isso porque as hipóteses concretas abarcadas pelo dispositivo corriqueiramente já se dão na forma qualificada, seja pelo emprego de arma (dificilmente um policial é morto em razão do exercício da função de outra forma- artigo 121, §2.º, I, CP) ou pelo emprego de outro meio que dificulta ou impede a defesa da vítima (emboscada, concurso de agentes - artigo 121, §2.º, IV, CP). Ainda, o ato de matar um policial em razão de sua função (agente da força de segurança) por si já representa uma motivação reprovável (motivo torpe - artigo 121, §2.º, IV, CP).
De outro lado, ponderada a desnecessidade do incremento punitivo, tem-se que o novel diploma estabelece uma perigosa abertura legitimadora do estado de polícia, do direito penal máximo (seja ampliando penas para inúmeras hipóteses, seja ampliando o rol de hediondos) e assim viola a perspectiva do direito penal enquanto garantia (contenção da violência estatal).
É certo que muitos agentes das forças de segurança vêem na nova lei uma alento para seu anseio por mais segurança no exercício da função. Porém o que se descortina em nossas ponderações é que tal sensação é equivocada.
Ainda nesse aspecto, em um tempo de deturpação acerca do sentido e alcance das manifestações que destoam do discurso de ampliação do poder punitivo, é preciso destacar que à toda evidência não se pretende aqui desprezar as dificuldades, riscos e precariedades a que estão ordinariamente submetidos os agentes da lei, vítimas constantes do mesmo sistema punitivo pelo qual "combatem".
- Uma expressão do direito penal midiático
Sobre esse aspecto, faço minhas as palavras irretocáveis da Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro Daniella Vitagliano, em artigo recentemente publicado pelo portal Empório do Direito:
Vivemos tempos de retrocessos e afrontas aos direitos mais elementares, dentro e fora do processo penal. Exemplo que constitui um dos expoentes dessa era de tentativa de derrocada do garantismo e estabelecimento de uma cultura do medo e do Direito Penal Simbólico, alavancada por uma parte da mídia irresponsável e comprometida com interesses escusos, é a tresloucada manobra do Presidente da Câmara, na última semana, de atingir a cláusula pétrea da maioridade penal aos dezoito anos, fixada a partir de critérios biopsicológicos, na contramão de todas as experiências internacionais em sentido contrário. A sociedade, impulsionada por manchetes de violência e terror, clama pelo expansionismo do Direito Penal e do recrudescimento das sanções, e como se não bastasse, incita a “justiça pelas próprias mãos”, promovendo verdadeiras sessões de tortura e linchamentos em praça pública daqueles que entendem ser indesejados à sociedade, sem qualquer direito à defesa.
Voltando ao tema proposto, verificam-se todos os elementos acima citados como fundamento das novas qualificações jurídicas e sanções propostas. Atendendo ao anseio de uma sociedade cada vez mais acuada pela violência que bate à sua porta diariamente, estampada nas notícias dos jornais, políticos preocupados com nada além da perpetuação de seus mandatos acolhem esses temores e os transformam em leis populistas e desvinculadas dos princípios mais caros à própria Constituição da República, cujos pilares se baseiam na perspectiva de um Estado Democrático de Direito. Afinal, é mais fácil atacar os resultados do que as raízes do problema. Isto é, se os policiais e agentes de segurança pública têm morrido no cumprimento de seus deveres, a solução é investir em condições dignas de trabalho para eles e, em relação aos excluídos do sistema, estabelecer políticas públicas de saúde e educação que lhes proporcione condições basilares de vida sem ceder aos apelos da marginalidade em seu sentido mais estrito. Nem iremos discutir a questão da inconstitucionalidade: torna a categoria dos agentes de segurança pública e seus companheiros e parentes merecedores de uma proteção estatal especial, em detrimento não só de outras autoridades, mas do cidadão que deve ser tratado como igual em virtude do artigo 5º, caput da Carta Magna.
- A enorme abrangência quanto ao sujeito passivo (vítima) do delito
Assusta a enorme abrangência da nova legislação no que concerne ao sujeito passivo, especialmente considerando que é justamente o elemento central da qualificadora ser o sujeito passivo “autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública” ou “seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau”.
Numa leitura superficial talvez se imagine estar falando de policiais e agentes carcerários, mas ao detalhar o rol certamente fica evidenciada sua assustadora abrangência.
Com efeito, falar em autoridade ou agente descrito no artigo 142 da Constituição Federal significa dizer qualquer membro das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica).
Mais do que isso, falar em autoridade ou agente descrito no artigo 144 da Constituição Federal, significa dizer: qualquer membro das polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis estaduais, militares estaduais e dos corpos de bombeiros militares estaduais, e das guardas municipais.
E também estão incluídos no rol de sujeitos passivos os integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública.
Os membros da Força Nacional de Segurança Pública, é verdade, já são membros das forças policiais descritas no artigo 144.
Mas quem seriam os integrantes do sistema prisional? A resposta imediata parece ser tão genérica e perigosamente ampla quanto dá a entender o dispositivo, seriam integrantes do sistema prisional para tais efeitos não somente os agentes penitenciários, mas também os membros da administração carcerária, servidores administrativos, etc.
E novamente, importa ressaltar que não somente tais agentes figuram como sujeitos passivos potenciais (e aqui certamente estamos falando de muitas centenas de milhares de indivíduos; muito provavelmente de alguns milhões de indivíduos!), mas também o cônjuge ou companheiro e os familiares consaguíneos até o terceiro grau desses agentes (e aqui descambamos para algumas dezenas de milhões de potenciais sujeitos passivos!).
- A vulgarização da Lei de Crime Hediondos (Lei 8.072/90)
A inclusão do crime de lesões corporais no já inchado rol de crimes hediondos nos parece contribuir muito mais à banalização desse rol, o qual deveria ser restritíssimo (destinado à tutela dos bens jurídicos mais essenciais dentre os mais essenciais; e contra as condutas ofensivas mais gravosas dentre as mais gravosas).
Não obstante, a banalização do rol de crimes hediondos com a inclusão de todo tipo de delito ao sabor dos ventos da pauta midiática (já uma realidade a considerar pela presença de delitos como a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, decorrente do escândalo midiático das pílulas de farinha em meados dos anos noventa) é uma tendência (aqui valendo destacar os projetos que tencionam a inclusão dos crimes de corrupção).
- Sobre a inutilidade das palavras impressas no papel (ou sobre o caráter meramente simbólico da nova legislação)
E ainda que se considerasse indispensável a inclusão dessas figuras delituosas no rol de crimes hediondos é preciso ponderar (como já fizemos em ocasiões anteriores em relação a outras leis e proposições legislativas) que nos termos do atual tratamento legislativo dado a esses crimes e da mais atual aplicação dada pelos tribunais brasileiros aos dispositivos da Lei 8.072/90, tem-se que poucas (muito poucas mesmo!) são as distinções que poderiam ser tidas como representativas do tratamento mais gravoso dispensado a tais delitos.
De fato, embora originalmente a Lei de Crimes Hediondos representasse um sistema de elevadíssimo rigor, impondo aos autores daqueles delitos o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, sem direito, portanto, à progressão para regime prisional mais brando, e tanto menos à fixação de regime inicial de cumprimento diverso do fechado, tal diploma repressor experimentou uma flexibilização por sucessivas alterações legislativas e pela interpretação dos tribunais brasileiros.
Atualmente, o tratamento aos crimes incluídos neste grupo difere dos crimes ditos comuns tão-somente quanto às frações da pena cumprida necessárias para a progressão de regime (artigo 2º, parágrafo 2º, Lei 8.072/90) e para a obtenção de livramento condicional (artigo 83, V, Código Penal), sendo hoje possível, inclusive, a fixação de regime inicial aberto para tais delitos - quando a quantidade de pena aplicada assim o autorizar (HC 111.840/STF), bem como a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direito.
Nesse sentido, incluir um crime no rol de hediondos não passa de mais uma deturpada manifestação de direito penal simbólico. Trata-se da lógica de que “toda cura para todo mal reside no direito penal”.
E aqui, acerca da função simbólica do direito penal, cabe a ponderação do professor Davi André Costa Silva:
Comumente tem-se visto o direito penal exercendo uma função simbólica caracterizada pela falsa sensação de que está cumprindo com as funções de proteção de bens jurídicos e de controle social. O melhor exemplo é o da “Lei Seca” que, além de não ter resolvido o caos da violência de trânsito, dificultou ou impediu a perfeita aplicação de determinados dispositivos penais do Código de Trânsito Brasileiro. (SILVA, Davi André Costa. Direito Penal - Parte Geral, 3.ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013)
E é justamente nesse alinhamento que se coloca nossa manifestação, posto que consideramos que a novel legislação não passa da demagógica expressão de um direito penal simbólico que de um lado não dá real enfrentamento a questão a que se propõe nem aprimora a proteção aos bens jurídicos que visa tutelar (reprimir e prevenir a prática de crimes violentos contra agentes das forças de segurança e seus familiares); e, de outro, permite a ampliação descontrolada do sistema punitivo, franqueando uma abertura muito ampla para o agravamento de penas e à restrição de garantias.