domingo, 15 de abril de 2012

Nossa sugestão à Comissão de Juristas responsável pela elaboração do Anteprojeto de Código Penal




RESUMO: CRIME CONTINUADO. TEORIA OBJETIVO-SUBJETIVA. NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO TEXTO LEGAL AO ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NOS TRIBUNAIS SUPERIORES. A presente análise visa fundamentar proposta apresentada à Comissão de Juristas instalada no Senado Federal da República com o fim de elaborar o Anteprojeto de Código Penal; sugestão esta no sentido de que seja acolhido pelo texto do Anteprojeto a proposta de alteração da redação do atual art. 71 do CP, acerca do crime continuado, passando a exigir-se expressamente para o reconhecimento de tal benefício a necessidade do elemento subjetivo unificador (unidade de desígnio; unidade de resolução criminosa). Assim, estar-se-ia adequando a lei penal brasileira ao entendimento há muito consolidado no âmbito da jurisprudência dos Tribunais Superiores; eliminando desnecessária e danosa insegurança jurídica decorrente da contradição atualmente existente entre o texto legal e o direito aplicado pelos tribunais. Outrossim, sustenta-se a maior adequação da própria teoria objetivo-subjetiva quanto aos requisitos do crime continuado. 

1. DA ATUAL POSIÇÃO LEGAL (TEORIA OBJETIVA PURA)

Dispõe o CP em sua atual redação: “Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”

Tanto nos termos do dispositivo em sua redação original, quando na atual, e nos termos da Exposição de Motivos da Parte Geral original de 1940, quanto da nova Parte Geral (Reforma de 1984) há uma clara opção do legislador penal brasileiro pela adoção da teoria objetiva pura quanto aos requisitos para o reconhecimento da continuidade delitiva. Nesse sentido a Exposição de Motivos da atual Parte Geral: “O critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva."

2. DO ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES (TEORIA OBJETIVO-SUBJETIVA)

Não obstante a posição adotada na atual lei penal (e desde a entrada em vigor do CP de 1940), a jurisprudência dos tribunais brasileiros, especialmente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, jamais acatou silenciosamente tal manobra legislativa, fazendo, por esta razão, verdadeira reconstrução hermenêutica do dispositivo legal para o fim de preservar a necessidade de observância de um requisito subjetivo (unidade de desígnios) ao lado dos elementos de natureza objetiva; tudo isto com o fito de evitar a concessão do benefício aos chamados “criminosos profissionais”, aqueles indivíduos que reiteradamente cometem crimes, fazendo do crime seu meio de vida. Em suma, apesar da reiterada adoção da teoria objetiva pura pelo legislador; a posição que sempre predominou e vem sendo aplicada pela jurisprudência é a teoria objetivo-subjetiva.

Nesse sentido é o atual entendimento do Supremo Federal: RHC 93144/SP, Rel. Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 18/03/2008; HC 101049, Rel.  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 04/05/2010; HC 107176/RS, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 13/09/2011.

No mesmo encadear de idéias é a mais segura jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. DECRETO CONDENATÓRIO TRANSITADO EM JULGADO.  IMPETRAÇÃO QUE DEVE SER COMPREENDIDA DENTRO DOS LIMITES RECURSAIS. FURTO CONSUMANDO, FURTO TENTADO E RECEPTAÇÃO. DOSIMETRIA DA PENA. PENA BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL DE FORMA FUNDAMENTADA. PREPONDERÂNCIA DA CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA SOBRE A CONFISSÃO ESPONTÂNEA. ARTIGO 67 DO CP. IMPOSSIBILIDADE DE COMPENSAÇÃO. PRECEDENTES. CONCURSO MATERIAL.SUBSTITUIÇÃO PELA REGRA DO CRIME CONTINUADO. VERIFICAÇÃO DE REQUISITOS. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA.  INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.[...] VII. Para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento dos requisitos objetivos (mesmas condições de tempo, espaço e modus operandi) e subjetivo (unidade de desígnios). VIII. Fator primordial, impeditivo da análise da tese defensiva na via do habeas corpus, está relacionado ao requisito subjetivo da existência de unidade de desígnios entre as condutas, o que, de plano, não se pode confirmar na hipótese dos autos. IX. Se as instâncias ordinárias, às quais é privativa a análise minuciosa dos fatos e provas, reconheceram o concurso material e afastaram o crime continuado, ressaltando a diversidade de desígnios, não resta evidenciado constrangimento ilegal.[...] (HC 214.895/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 20/03/2012, DJe 26/03/2012)

AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. AÇÕES PENAIS. CONDENAÇÕES.CONTINUIDADE DELITIVA. PRETENDIDO RECONHECIMENTO. REQUISITOS DO ART.71 DO CP. NÃO PREENCHIMENTO. AUSÊNCIA DE UNIDADE DE DESÍGNIOS.REITERAÇÃO DELITIVA. CONFIGURAÇÃO. APLICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES. COAÇÃO ILEGAL NÃO DEMONSTRADA. RECURSO IMPROVIDO. 1. Para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento de requisitos de ordem objetiva - mesmas condições de tempo, lugar e forma de execução - e subjetiva - unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre os eventos (art. 71 do CP) (Teoria Mista ou Objetivo-subjetiva). 2. Constatada a reiteração criminosa, inviável acoimar de ilegal a decisão que negou a incidência do art. 71 do CP, pois, na dicção do Supremo Tribunal Federal, a habitualidade delitiva afasta o reconhecimento do crime continuado.[...] (AgRg no HC 214.158/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2011, DJe 02/02/2012)

HABEAS CORPUS. ROUBO SIMPLES E ROUBO MAJORADO TENTADO. CONTINUIDADE DELITIVA. PRETENDIDO RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 71 DO CP. DESÍGNIOS AUTÔNOMOS. REITERAÇÃO CRIMINOSA. CONFIGURAÇÃO. INCOMPATIBILIDADE COM O CRIME CONTINUADO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Para a caracterização da continuidade delitiva, é necessário que estejam preenchidos, cumulativamente, os requisitos de ordem objetiva - quais sejam, pluralidade de ações, mesmas condições de tempo, lugar e modo de execução - e o de ordem subjetiva, assim entendido como a unidade de desígnios ou o vínculo subjetivo havido entre os eventos delituosos. 2. Ausente o liame subjetivo entre o cometimento dos ilícitos, inviável o reconhecimento da continuidade delitiva.3. A reiteração criminosa é suficiente para afastar o reconhecimento do benefício legal do crime continuado.4. A via estreita do habeas corpus, de cognição sumária, é inadequada para um maior aprofundamento na apreciação do conjunto fático-probatório dos autos, a fim de verificar eventual preenchimento dos requisitos indispensáveis ao reconhecimento da continuidade delitiva.5. Ordem denegada.(HC 174.162/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 13/09/2011, DJe 28/09/2011)

Tal entendimento, no sentido da adequação da teoria objetivo-subjetiva do crime continuado, ademais, tem amparo em importantes doutrinadores nacionais, a destacar: Damásio Evangelista de Jesus, Rogério Greco e o saudoso Edgar Magalhães Noronha.

3. DA CONTROVÉRSIA E CONSEQUENTE INSEGURANÇA JURÍDICA ACERCA DA MATÉRIA

Não obstante, como já foi de plano destacado, o entendimento doutrinário predominante é no sentido de que o Código Penal Brasileiro adotou o critério puramente objetivo em matéria de crime continuado, bastando para o reconhecimento do benefício a simples configuração dos elementos de homogeneidade objetiva (crimes da mesma espécie, cometidos em semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução, etc.). Aliás, tal posição é expressamente mencionada na Exposição de Motivos da atual Parte Geral (Reforma Penal de 1984)

O próprio GUILHERME DE SOUZA NUCCI, um dos mais renomados doutrinadores penais da atualidade, não sem consignar sua preferência pela teoria objetivo-subjetiva, reconhece a adoção da referida teoria objetiva pura pela atual lei penal brasileira, asseverando:

 “A corrente ideal, sem dúvida, deveria ser a terceira [referindo-se a teoria objetivo-subjetiva], tendo em vista possibilitar uma autêntica diferença entre o singelo concurso material e o crime continuado; afinal este último exigiria a unidade de desígnio. Somente deveria ter direito ao reconhecimento desse benefício legal o agente criminoso que demonstrasse ao juiz o seu intuito único, o seu propósito global, vale dizer, evidenciasse que desde o princípio, ou pelo menos durante o iter criminis, tinha o propósito de cometer um crime único, embora por partes. É o caso do balconista de uma loja que, pretendendo subtrair R$1.000,00 do seu patrão, comete vários e contínuos pequenos furtos até atingir a almejada quantia. Completamente diferente seria a situação daquele ladrão que comete furtos variados, sem qualquer rumo ou planejamento, nem tampouco objetivo único. Entretanto, apesar disso, a lei adotou claramente a segunda posição [teoria objetiva pura]. Em virtude disso, cremos que se deve seguir literalmente o disposto no art.71 do Código Penal.”(2009, Manual de Direito Penal, p.491/492.)

Tal contradição produz induvidosa e nociva insegurança jurídica acerca da regulação do benefício legal.

4. DA NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO TEXTO LEGAL AO ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Conforme o até aqui exposto, e tendo em vista a existência da controvérsia em torno da matéria, se faz adequada e razoável a conformação do texto legal ao entendimento historicamente adotado pela jurisprudência dos tribunais superiores, no sentido de exigir-se para o reconhecimento do crime continuado (benefício legal ao condenado) não somente os requisitos de homogeneidade objetiva das condutas (crimes da mesma espécie, cometidos em semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução, etc.), mas também a homogeneidade subjetiva (unidade de desígnio; unidade de resolução criminosa).

Tal apresenta-se como medida inteiramente adequada, sustentada tanto em justificações no campo jurídico, como também na dimensão da realidade social.

Ora, no campo jurídico tem-se que tal alteração do texto legal poderia dirimir a nociva insegurança jurídica instaurada em virtude da contradição entre a literalidade do atual dispositivo de lei e a posição adotada pela jurisprudência consolidada nos tribunais brasileiros, especialmente nos tribunais superiores.

Ademais, apresenta-se a teoria objetivo-subjetiva como mais adequada à luz dos princípios constitucionais da razoabilidade, culpabilidade e da individualização da pena, na medida em que permite ao magistrado, no momento da aplicação da pena, afastar o benefício legal aos condenados que fazem do crime seu meio de vida, e assim representam especial perigo à segurança e harmonia sociais, além de elevada culpabilidade, não fazendo assim jus à um benefício legal idealizado para evitar o apenamento excessivo e desproporcional. Dessa forma, o benefício da continuidade ficaria reservado para os casos em que o concurso material de delitos se apresentaria desproporcional e injusto.

Tal ganha especial relevo, em face da atual realidade de recrudescimento da criminalidade, a qual exige uma resposta estatal em termos de pena que se apresente como suficiente e necessária para reprimir e prevenir a prática criminosa.

Outrossim, analisando-se o direito comparado, seja nos países onde a legislação expressamente acolhe o instituto benéfico do crime continuado, seja onde ele, embora não expresso em lei, representa construção da jurisprudência, predomina a posição de adotar-se a teoria objetivo-subjetiva. Assim o é no direito de nossos mais importantes parceiros do Mercosul, Uruguai e Argentina. Ademais, nesse sentido também é o modelo adotado pelos Códigos Penais da Espanha e Itália, bem como a construção jurisprudencial do Tribunal Superior alemão.

Assim sendo, a adoção expressa da teoria objetivo-subjetiva por nossa legislação penal apresenta-se como um importante avanço de nosso sistema jurídico-penal positivo.

5. DA SUGESTÃO DE ALTERAÇÃO LEGAL

Consoante todo o acima exposto e analisado, sugere-se  que seja procedida a adoção expressa da necessidade de observância de requisitos objetivos e subjetivos de homogeneidade das condutas delitivas para o fim de concessão do benefício legal do crime continuado.

Nesse sentido, sugere-se a seguinte redação para o novo dispositivo:

"Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, bem como pela presença da unidade de desígnio entre as condutas, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”

6. DA REDAÇÃO DA SUGESTÃO ENVIADA

Em síntese, e observando a limitação de 500 caracteres estabelecida para as sugestões enviadas à Comissão de Juristas pelo sítio virtual do Senado Federal, nossa sugestão seguiu a seguinte redação:

"A jurisprudência do STF (RHC93144/SP; HC 101049; HC107176/RS) e do STJ (HC 214.895/RJ; AgRg no HC 214.158/RS; HC 174.162/RJ) adota a teoria objetivo-subjetiva para o reconhecimento do crime continuado. Dessa forma propõe-se a expressa adoção da teoria objetivo-subjetiva para reconhecimento do crime continuado sugerindo-se a menção na lei da necessidade de que as condutas praticadas em continuidade apresentem homogeneidade subjetiva (unidade de desígnio) além de homogeneidade objetiva."


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