domingo, 27 de abril de 2014

A (im)possibilidade de aplicação do princípio da insignificância no delito de posse de drogas para consumo pessoal (art. 28, Lei 11.343/06)


[...]conclui-se inexistir qualquer incompatibilidade 
in abstracto quanto à incidência do princípio da insignificância no delito de posse de drogas para consumo pessoal (art.28, Lei 11.343/06), devendo tal possibilidade ser analisada de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso.



Cocaína, imagem disponível em  Wikipedia 
A aplicação do princípio da insignificância no âmbito penal é prática consagrada pela doutrina e jurisprudência pátrias, e deriva diretamente da efetivação da cláusula geral de proteção da dignidade da pessoa humana, insculpida no artigo 1.º, III, da Constituição da República, e expressamente elevada ao status de princípio fundante de todo o ordenamento jurídico brasileiro pelo Poder Constituinte Originário de 1988.

E em decorrência de tal princípio fundante, a intervenção penal em nosso Estado Democrático de Direito deve observar aos postulados da lesividade e intervenção mínima (subsidiariedade, exclusiva proteção a bens jurídicos com dignidade penal, fragmentariedade e insignificância), de modo a somente legitimar-se o emprego das sanções penais quando para a salvaguarda dos bens jurídicos mais essenciais ao corpo social contra comportamentos que representem uma lesão ou ameaça de lesão relevantes/significantes.

Nessa esteira, sob o manto do princípio da insignificância ou bagatela, afirma-se a irrelevância penal daquelas condutas que embora formalmente típicas (porque subsumidas ao modelo típico descrito em norma penal incriminadora), concretamente, não afetam de modo significativo o bem jurídico tutelado, assim carecendo de tipicidade material.

Ainda, insta salientar ser indiferente para fins de possibilidade de incidência do referido princípio tratar-se o delito concretamente imputado de crime de resultado ou de perigo (concreto ou abstrato). Isso porque, na esteira do sustentado pelo eminente Professor Juarez Tavares, na condição de Subprocurador-Geral da República, ao manifestar-se perante o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC 168.049/SC (apud Parecer n.º 8864/11, proferido pelo Ilmo. Subprocurador-Geral da República Mário José Gisi, perante o STF, nos autos do HC 110.475/SC):


[...] o fato de o tipo configurar um delito de perigo abstrato não pode impedir a aplicação do princípio da insignificância. Isso porque, mesmo nesses casos, não se afasta a necessidade de aferição da lesividade da conduta, ou seja, se capaz ou não de atingir, concretamente, o bem jurídico resguardado pela norma.

É indispensável que se demonstre a aptidão da conduta em lesar o bem jurídico, não bastando que, pelo simples fato de figurar no rol de substâncias proibidas pela lei, se pressuponha, de forma absoluta, que qualquer quantidade de droga seja capaz de produzir danos à saúde pública.
[...]


Fixadas as premissas acima, conclui-se inexistir qualquer incompatibilidade in abstracto quanto à incidência do princípio da insignificância no delito de posse de drogas para consumo pessoal (art.28, Lei 11.343/06), devendo tal possibilidade ser analisada de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso.

Assim, por exemplo, em hipótese na qual  um indivíduo tenha sido flagrado portando quantidade manifestamente ínfima de entorpecente para consumo pessoal (menos de 1g de maconha; 0,5g de crack, apenas para citar exemplos encontrados em precedentes judiciais), incapaz de colocar em risco significativo o bem jurídico tutelado pela norma penal, a saúde pública, tranquilamente cabível a incidência da excludente de tipicidade em comento.

No caso do delito de posse de drogas, é ainda mais amplo o espectro de incidência concreta do princípio em comento, especialmente porque nestes casos a quantidade ínfima de droga tem por destinação o consumo próprio por parte do agente, o qual inclusive, em muitos casos, porta juntamente com o entorpecente instrumentos destinados ao consumo da droga (cachimbo, papel de seda, etc.), circunstância esta evidenciadora de seu dolo no consumo imediato do entorpecente, inexistindo, com ainda mais razão nesses casos, qualquer risco relevante relacionado a colocação de tal droga em circulação (lembrando ser o objetivo fundamental de todo o sistema de repressão ao tráfico e prevenção ao consumo de drogas fixado na lei,  justamente, tutelar a saúde pública restringindo a circulação do entorpecente no meio social).

Nesse sentido, aliás, já se manifestou de forma inequívoca o Supremo Tribunal Federal, consoante decisum unânime da 1.ª Turma:


EMENTA PENAL. HABEAS CORPUS. ARTIGO 28 DA LEI 11.343/2006. PORTE ILEGAL DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ÍNFIMA QUANTIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. WRIT CONCEDIDO. 1. A aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, exige sejam preenchidos, de forma concomitante, os seguintes requisitos: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) relativa inexpressividade da lesão jurídica. 2. O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. 3. Ordem concedida. (HC 110475, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 14/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-054 DIVULG 14-03-2012 PUBLIC 15-03-2012 RB v. 24, n. 580, 2012, p. 53-58)
Nesse sentido, perfeitamente possível a incidência do princípio da insignificância, causa de exclusão da tipicidade material, com relação ao delito de posse de drogas para consumo pessoal (art.28, Lei 11.343/06), observadas as condições do caso concreto.

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