Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Foto de Carlos Luis M C da Cruz, disponível em Wikipedia |
Recentemente, noticiaram os jornais que, a pedido
da autoridade policial, e com a concordância do Ministério Público, o Poder Judiciário
do Estado do Rio de Janeiro mandou expedir um mandado de busca e apreensão coletivo/genérico,
facultando à autoridade policial e seus agentes o ingresso em quaisquer
domicílios situados na: Rua Roberto Silveira, Rua 29 de Julho, Rua Flávia
Farnense, Rua Texeira Ribeiro, Rua Tatajuba, Rua João pessoa, Rua Darci Vargas,
Rua Ari Leão, Rua Caminho Rubens Vaz, Rua Principal, Rua Massaranduba, Rua
Bitencourt, Rua 1, Rua 2, Rua 4, Rua Larga, Rua da Praia, Rua Raul Brunini, Rua
da Paz, na localidade conhecida como Sem terra e na Rua Nova, todas no
“Conjunto de Favelas da Maré”, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
Tal notícia foi difundida no conjunto das
coberturas midiáticas da ocupação de favelas no Rio de Janeiro com o auxílio
das Forças Armadas nas últimas semanas. A notícia assusta. E mais que ela, a
pouca ou quase inexistente repercussão do tema no meio jurídico aterroriza aos
que creem no Estado de Direito e no Poder Judiciário como garantidor dos
direitos fundamentais.
Com efeito, a inviolabilidade de domicílio é direito
fundamental, consagrado nas constituições das nações livres a partir do
paradigma inglês. Nesse ponto, cumpre lembrar as palavras sempre atuais de Lord
Chatham ao Parlamento Britânico acerca da garantia fundamental da
inviolabilidade de domicílio:
O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças das Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar. (MORAES, 2006)
No Brasil a inviolabilidade do domicílio é
assegurada desde o advento da Constituição de 1824, a qual textualmente
assegurava em seu artigo 179, inciso VII, que:
Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar.
Na atual Constituição da República Federativa do
Brasil, o dito direito fundamental encontra-se afirmado no artigo 5.°, XI,
segundo o qual:
a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
Em outras palavras, se pode dizer que, como regra, ninguém
pode entrar na casa alheia sem o consentimento do morador, devendo ser
entendido por casa o lugar onde uma pessoa vive ou trabalha, não acessível ao
público em geral, reservado à sua intimidade e à sua vida privada. Considera-se
domicílio, pois, para fins do texto constitucional, todo local, delimitado e
separado, por alguém ocupado de modo exclusivo a qualquer título, inclusive
profissionalmente.
E assim, ressalvadas as hipóteses excepcionais de flagrante delito ou desastre, o ingresso no domicílio de um indivíduo somente se pode dar por força de determinação judicial. E nesse ponto, vale dizer, se está diante de verdadeira cláusula de reserva jurisdicional, sendo atribuição exclusiva do Poder Judiciário da República, por meio de seus órgãos, autorizar mediante mandado o ingresso no domicílio particular. Assim, é, nesses casos, o Judiciário guardião exclusivo dos direitos fundamentais do cidadão.
E assim, ressalvadas as hipóteses excepcionais de flagrante delito ou desastre, o ingresso no domicílio de um indivíduo somente se pode dar por força de determinação judicial. E nesse ponto, vale dizer, se está diante de verdadeira cláusula de reserva jurisdicional, sendo atribuição exclusiva do Poder Judiciário da República, por meio de seus órgãos, autorizar mediante mandado o ingresso no domicílio particular. Assim, é, nesses casos, o Judiciário guardião exclusivo dos direitos fundamentais do cidadão.
Esclarecido o enunciado
constitucional, é a lei ordinária que específica os requisitos e hipóteses nos
quais se pode conceder a dita determinação constitucional.
Notadamente, os artigos 240 e seguintes do Código de Processo Penal, ao regularem o Mandado de Busca e
Apreensão, estabelecem os requisitos (o mandado de busca deverá: I - indicar, o
mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome
do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da
pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem; II - mencionar o
motivo e os fins da diligência; III - ser subscrito pelo escrivão e assinado
pela autoridade que o fizer expedir.) e delimitam situações nas quais, ponderado
o interesse público, mostra-se cabível a autorização judicial para ingresso no
domicílio do cidadão (para prender criminosos; apreender coisas achadas ou
obtidas por meios criminosos; apreender instrumentos de falsificação ou de
contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; apreender armas e munições,
instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;
descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; apreender
cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja
suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do
fato; apreender pessoas vítimas de crimes; colher qualquer elemento de
convicção).
Nesse passo, tratando-se a autorização judicial para ingresso no domicílio de medida
excepcional, a qual restringe um direito fundamental do indivíduo, conforme destaca o jurista
Aury Lopes Júnior (Direito Processual Penal, 2012, p. 711) "é absolutamente
inadmissível o mandado incerto, vago ou genérico. A determinação do
varejamento, ou da revista, há de apontar, de forma clara, o local, o motivo da
procura e a finalidade, bem como qual a autoridade judiciária que a expediu. É
importantíssima a indicação detalhada do motivo e dos fins da diligência, como
determina o artigo 243, II, do CPP."
Ainda, conforme o processualista gaúcho (LOPES JÚNIOR, 2012, P. 711):
A indicação da casa ou local onde a busca será realizada é imprescindível. Não se justifica que a autoridade policial (ou o MP) postule a busca e apreensão como primeiro ato da investigação. Não se busca para investigar, senão que se investiga primeiro e, só quando necessário, postula-se a busca e apreensão. Logo, inexiste justificativa para que uma busca seja genérica nesse requisito (endereço correto). Que primeiro a autoridade policial investigue e defina o que precisa buscar e onde.
Portanto, descabida a autorização genérica, despida de embasamento em prévias diligências investigatórias aptas a apontar os suspeitos, os precisos locais onde se encontram as pessoas ou coisas a que se busca, bem como de decisão fundamentada da autoridade judiciária, com base nos elementos concretos, pormenorizando os limites pessoais e espaciais da diligência a ser realizada, bem como os objetos (ao menos em espécie/gênero) a serem buscados.
Na mesma linha é o posicionamento externado por Guilherme de Souza Nucci (2013, p.542), Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2011, p.448), e Alexandre Morais da Rosa (2013, p. 145-146).
Com efeito, a concessão de mandado de busca e apreensão coletivo, permitindo à autoridade policial e seus agentes que procedam na busca domiciliar em quaisquer residências situadas em todo um complexo de ruas, a favela da Maré, foge completamente aos ditames da lei e da Constituição, vulnerando o direito fundamental à inviolabilidade de domicílio. E ao se colocar em xeque um direito fundamental tão elementar, coloca-se em risco o próprio Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, fica o registro da gravidade representada pela concessão indiscriminada de mandados de busca e apreensão genéricos, de que o caso concreto colocado neste texto (infelizmente!) não é um fato isolado, bem como da necessidade de insurgência dos operadores do direito (especialmente delegados de polícia, advogados, membros do ministério público e magistrados) contra tais práticas.
Fica também o desabafo de um operador do direito diante da fragilização do Estado de Direito e da posição do Poder Judiciário enquanto garantidor da eficácia dos direitos fundamentais dos indivíduos.
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Referências
INSTITUTO DE DEFENSORES DOS DIREITOS
HUMANOS. DDH e Centro de Assessoria Popular Mariana Criola ingressaram com
Mandado de Segurança questionando a legalidade do uso de mandado de busca e
apreensão genérico em ocupação militar da Maré, Disponível em: http://ddh.org.br/ddh-e-centro-de-assessoria-popular-mariana-criola-ingressaram-com-mandado-de-seguranca-questionando-a-legalidade-do-uso-de-mandado-de-busca-e-apreensao-generico-em-ocupacao-militar-da-mare/.
Acesso em: 06 abr 2014.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, 2013.
TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Juspodivm, 2011.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia
Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2013.
SOARES, Rafael. Justiça expede mandado
coletivo e polícia pode fazer buscas em todas as casas do Parque União e da
Nova Holanda. Disponível em:
http://extra.globo.com/casos-de-policia/justica-expede-mandado-coletivo-policia-pode-fazer-buscas-em-todas-as-casas-do-parque-uniao-da-nova-holanda-12026896.html#ixzz2y8p39wct.
Acesso em: 06 abr 2014.
Que orgulho de menino! Excelente texto!
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