Em decisão recente e emblemática, o Juiz de Direito Mauro Caum Gonçalves, titular da Segunda Vara Criminal e Juizado Especial do Torcedor e Grandes Eventos do Foro Central da Comarca de Porto Alegre/RS, rejeitou a denúncia ofertada pelo Ministério Público em desfavor de dois acusados aos quais se imputava a prática do tráfico de drogas.
Segundo o magistrado, a simples apreensão de pequena quantidade de entorpecente e dinheiro em poder dos denunciados, sem a presença de quaisquer outros elementos a indicar a finalidade de traficância, não autorizaria sequer o oferecimento de denúncia pelo delito de tráfico de drogas.
Nesse aspecto aduziu o julgador “que para a verificação dos indícios razoáveis de autoria do tipo penal incriminador indicado na denúncia, deve haver elementos extraídos da investigação preliminar que denotem, em juízo de probabilidade, o ato de traficância. Não se exige, como já referido, que tais elementos probatórios gerem juízo de certeza, mas que ao menos justifiquem a admissão da imputação e o custo que a instauração do processo penal representa em termos de estigmatização e prejuízos de ordem processual (prisões cautelares, medidas cautelares diversas, apreensão de bens, etc.). Enfim, deve haver demonstração indiciária razoável da comercialização, entrega para consumo ou fornecimento da droga, mesmo que gratuitamente, a fim de se ter preenchido o requisito da justa causa para a instauração da ação penal”.
Veja a seguir o inteiro teor da decisão proferida nos autos do processo n.º 001/2.14.0066031-7:
1) O Ministério Público denunciou DEIVID [...] e DOUGLAS [...] dando-os como incursos nas sanções do artigo 33, caput, c/c o artigo 40, inciso III, ambos da Lei nº 11.343/2006, pela prática do fato descrito na fl. 02. A denúncia foi inicialmente recebida (fl. 115), tendo o réu DEIVID sido pessoalmente citado e apresentado resposta à acusação. Quanto ao acusado DOUGLAS, em face de não ter sido localizado, realizou-se a sua citação por edital.
2) A inicial acusatória é singela: isso porque não deixa claro o porquê de a situação fática exposta "apreensão de droga com os réus" implicar, necessariamente, na conclusão jurídica exposta "ser a droga para fornecimento a terceiros". Com efeito, para o ato de receber (ou não) a denúncia se prescinde de um exame aprofundado do acervo, no sentido de que é dispensável a certeza de que 'foi fulano' quem cometeu determinado crime; bastam, 'apenas', a prova da materialidade do delito e indícios ('suficientes') da autoria. Nada obstante estar demonstrada a materialidade delitiva, conforme o laudo pericial definitivo de avaliação da substância, o requisito da verificação de indícios mínimos de autoria, a seu turno, merece, no caso dos autos, análise mais detida. É que para a verificação dos indícios razoáveis de autoria do tipo penal incriminador indicado na denúncia, deve haver elementos extraídos da investigação preliminar que denotem, em juízo de probabilidade, o ato de traficância. Não se exige, como já referido, que tais elementos probatórios gerem juízo de certeza, mas que ao menos justifiquem a admissão da imputação e o custo que a instauração do processo penal representa em termos de estigmatização e prejuízos de ordem processual (prisões cautelares, medidas cautelares diversas, apreensão de bens, etc.). Enfim, deve haver demonstração indiciária razoável da comercialização, entrega para consumo ou fornecimento da droga, mesmo que gratuitamente, a fim de se ter preenchido o requisito da justa causa para a instauração da ação penal. Como se pode perceber, os únicos elementos a respaldar a imputação do fato são os depoimentos dos policiais que participaram da ocorrência, os quais limitam-se a referir que receberam informações de que, no local dos fatos, haveria indivíduos traficando, e que, ao abordar os acusados, encontraram droga e dinheiro. Ora, na perspectiva do Direito Penal vigente, que orienta e legitima o controle social de ultima ratio adotado pelo Estado Brasileiro, não se pode imputar a alguém a autoria de tráfico de drogas pelo simples fato de se encontrar em local conhecido como ponto de venda de entorpecentes (conforme descrito na denúncia), portando determinada quantidade de droga e dinheiro trocado, se não houver elementos outros a indicar a conduta imputada. Deve-se ter presente em mente, nessa esteira, a fim de bem delinear a responsabilidade exigida pelo caso, que a alteração de tratamento promovida pela 'nova' Lei de Drogas ao abolir o apenamento corporal do usuário e amplificar as reprimendas e as restrições processuais ao traficante acabou criando, na dicção de Salo de Carvalho, "dobras e lacunas de legalidade que permitem um amplo poder criminalizador aos agentes das polícias", através de "estruturas normativas abertas, contraditórias ou complexas que criam zonas dúbias que são instantaneamente ocupadas pela lógica punitivista e encarceradora", a qual ganha força e concretude na atuação dos agentes de persecução penal, quando agem no interesse de legitimar a profissão que ostentam e no afã de responder aos anseios da sociedade (que clama por sensação de segurança), ainda que para isso seja necessário o cometimento de abusos advindos de interpretações indevidamente alargadas. Pontua, ainda, o citado jurista, que não é necessária uma base criminológica crítica para perceber que a Nova Lei de Drogas, ao invés de definir precisamente os critérios de imputação, "prolifera metarregras que se fundem em determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem e onde circulam os traficantes e os consumidores". Ou seja, as figuras pré-definidas do "elemento suspeito" e da "atitude suspeita", em "local de venda de drogas", descortinam os elementos interpretativos que no cotidiano policial criminalizam um grupo social vulnerável bem representado no sistema carcerário: "jovens pobres, em sua maioria negros, que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos" (nesse sentido, Batista, 2003;Carvalho, 2013; Weigert, 2009; Mayora, 2011; Mayora, Garcia, Weigert Eamp;Carvalho, 2012). No caso concreto, chamo a atenção, não foi requisitada pelo órgão acusador qualquer investigação preliminar para determinar a origem da droga; a que título a possuía os denunciados; de quem e por qual razão adquiriram a droga; a que grupo pertenceriam; ou quem seria o 'patrão' da suposta empreitada criminosa, já que não se atribui tais funções aos acusados e sabe-se que são essenciais, mesmo que de forma indiciária, à indicação do cometimento do tráfico e principalmente para distinguir-se o traficante da figura do usuário, sempre presente em locais de traficância. No caso dos autos, os policiais simplesmente pegaram os denunciados com a droga e enquadram-nos como traficante. Mas só isso é muito pouco, mormente em se considerando a quantidade da droga (6,65 gramas) e dos valores apreendidos (R$ 50,00), que é mínima. Salienta-se que, a referendar o raciocínio ora exposto, em recente decisão proferida pela Suprema Corte, na qual um acusado por tráfico de drogas foi absolvido, o Ministro Gilmar Mendes, relator do Habeas Corpus nº 123221, afirmou que "a pequena quantidade de drogas e a ausência de outras diligências apontam que a instauração da ação penal com a condenação são medidas descabidas". Ressaltou o Ministro, portanto, que sequer a propositura da ação penal seria medida adequada nesses casos. Disse, ainda, o Ministro Gilmar Mendes: "(...) vislumbro indicativos de que a mudança de tratamento promovida pela Lei 11.343/06, que aboliu a pena privativa de liberdade para usuário (art. 28), provocou uma reação inesperada e indesejável: fatos limítrofes, anteriormente registrados como uso, passaram a ser tratados como tráfico de drogas. Conforme dados do Infopen, em 2006, houve 47.472 prisões por tráfico de drogas. A Lei 11.343/06 entrou em vigor em outubro de 2006. No ano seguinte (2007), foram registradas 65.494 prisões por tráfico, um aumento de 38%. E essa escalada prosseguiu. Em 2010, foram 106.491 prisões. Tendo isso em vista, proponho seja oficiado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para que fomente a uniformização de procedimentos e a conscientização dos órgãos envolvidos na persecução penal acerca da importância da verificação, em todas as fases do procedimento, da justa causa para enquadramento mais gravoso 'tráfico', em lugar do mais benéfico 'uso de drogas'. Como visto, o relator propôs, e foi acolhido pela unanimidade dos Ministros, que se oficiasse ao CNJ no intuito de que avaliasse a possibilidade de uniformizar os procedimentos de aplicação da Lei nº 11.343/2006, no intuito de que os órgãos de persecusão penal empenhem-se na tarefa de reforçar, com maior zelo, a linha tênue que separa a intervenção penal sobre o traficante e sobre o usuário, tendo em vista a quantidade de casos semelhantes que chegam ao STF. Como asseverou o Ministro Celso de Mello, assentindo com a proposta após intenso debate, são "casos de inadequada qualificação jurídica que culminam por subverter a finalidade que motivou a edição dessa nova Lei de Drogas". Reconhecida, assim, a insuficiência de elementos a indicar tráfico de drogas (mesmo no âmbito de uma cognição de aparência, não de certeza), verifica-se quadro fático de ausência de justa causa ("necessidade da existência de lastro probatório mínimo a comprovar a imputação") para a ação penal, situação que impõe, pois, a rejeição da denúncia. Saliento, outrossim, acerca da possibilidade de rejeição da peça acusatória neste momento processual "logo após o oferecimento de resposta à acusação - caso reste constatada a existência de uma das causas previstas no art. 395 do CPP, o que ocorreu no caso em tela, mormente à luz do decidido pelo STF no Habeas Corpus nº 123221. Nesse sentido, colaciono ementa de julgamento proferido no STJ pelo Min. Sebastião Reis Júnior, corroborando a possibilidade de reconsideração da anterior decisão que recebeu a denúncia: RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. RESPOSTA DO ACUSADO. RECONHECIMENTO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. POSSIBILIDADE. ILICITUDE DA PROVA. AFASTAMENTO. INVIABILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO. FUNDAMENTO EXCLUSIVAMENTE CONSTITUCIONAL. DECRETO REGULAMENTAR. TIPO LEGISLATIVO QUE NÃO SE INSERE NO CONCEITO DE LEI FEDERAL (ART. 105, III, A, DA CF) 1. O fato de a denúncia já ter sido recebida não impede o Juízo de primeiro grau de, logo após o oferecimento da resposta do acusado, prevista nos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal, reconsiderar a anterior decisão e rejeitar a peça acusatória, ao constatar a presença de uma das hipóteses elencadas nos incisos do art. 395 do Código de Processo Penal, suscitada pela defesa. 2. As matérias numeradas no art. 395 do Código de Processo Penal dizem respeito a condições da ação e pressupostos processuais, cuja aferição não está sujeita à preclusão (art. 267, § 3º, do CPC, c/c o art. 3º do CPP). 3. Hipótese concreta em que, após o recebimento da denúncia, o Juízo de primeiro grau, ao analisar a resposta preliminar do acusado, reconheceu a ausência de justa causa para a ação penal, em razão da ilicitude da prova que lhe dera suporte. 4. O acórdão recorrido rechaçou a pretensão de afastamento do caráter ilícito da prova com fundamento exclusivamente constitucional, motivo pelo qual sua revisão, nesse aspecto, é descabida em recurso especial. 5. Os decretos regulamentares não se enquadram no conceito de lei federal, trazido no art. 105, III, a, da Constituição Federal. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido. (REsp 1318180/DF, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 16/05/2013, DJe 29/05/2013).
3) Pelo fundamentado, REJEITO A DENÚNCIA oferecida em desfavor de DEIVID VARGAS RAMIREZ e DOUGLAS DA SILVA PEREIRA, por ausência de justa causa, com fundamento no artigo 395, III, do Código de Processo Penal e com arrimo no que decidido pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal no HC antes mencionado. Intimem-se. Com trânsito em julgado, preencham-se e remetam-se os BIEs, devolvendo-os à origem, e dê-se baixa e arquive-se.