quarta-feira, 25 de março de 2015

Da atipicidade da posse de arma de fogo com registro vencido

Imagem de registro de arma de fogo de DEFESA
Em que pese a posse ilegal de arma de fogo de uso permitido (artigo 12 da Lei 10.826/03) seja delito de perigo abstrato, dispensando a ocorrência de resultado naturalístico para sua consumação, nos casos em que o possuidor tenha a arma devidamente registrada, mas com o registro vencido, não há que se falar em conduta típica criminal.

Efetivamente, em tais situações o agente possui autorização do Poder Público para possuir arma de fogo, não configurando ilícito criminal a conduta omissiva de mera falta de renovação do registro. Tal, no máximo, ensejaria a configuração de ilícito administrativo.

Eis o entendimento condutor de recente e importante decisão do Superior Tribunal de Justiça nos autos do HC 294.078/SP.

Trata-se de  julgado paradigma acerca da matéria e que delimitou o tema nos seguintes termos:  

HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. ART. 12 DA LEI N. 10.826/2003. POSSE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM O REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL. PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA QUE SE MOSTRA SUFICIENTE.  3. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, buscando a racionalidade do ordenamento jurídico e a funcionalidade do sistema recursal, vinha se firmando, mais recentemente, no sentido de ser imperiosa a restrição do cabimento do remédio constitucional às hipóteses previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Nessa linha de evolução hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir habeas corpus que tenha por objetivo substituir o recurso ordinariamente cabível para a espécie. Precedentes. Contudo, devem ser analisadas as questões suscitadas na inicial no intuito de verificar a existência de constrangimento ilegal evidente - a ser sanado mediante a concessão de habeas corpus de ofício -, evitando-se prejuízos à ampla defesa e ao devido processo legal. 2. O trancamento de ação penal na via estreita do writ configura medida de exceção, somente cabível nas hipóteses em que se demonstrar, à luz da evidência, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou outras situações comprováveis de plano, suficientes ao prematuro encerramento da persecução penal. Na espécie, o paciente foi denunciado pela suposta prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003, por possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre 38, número QK 591720, além de dezoito cartuchos de munição do mesmo calibre. 3. Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência - de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário -, inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo - devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem - deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n.10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na via administrativa. 4. Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido, de ofício, para extinguir a Ação Penal n. 0008206-42.2013.8.26.0068 movida em desfavor do paciente, ante a evidente falta de justa causa. (HC 294.078/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 04/09/2014)

De fato, o Direito Penal no âmbito do Estado Democrático de Direito deve pautar-se pelos postulados da intervenção mínima, notadamente sob a égide dos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.

Nesse sentido é a lição de Davi André Costa Siva acerca da diretriz da intervenção mínima:
Verdadeiro princípio-garantia, o princípio da intervenção mínima coloca o direito penal no seu devido lugar: na última fronteira (ultima ratio). Desse primado decorrem o caráter fragmentário e a natureza subsidiária do direito penal.
O caráter fragmentário do direito penal se deve ao fato de que ele não se ocupa de qualquer bem jurídico, mas dos mais relevantes. Da subsidiariedade, afirma-se que o direito penal só é chamado a intervir no conflito quando os outros ramos do direito se demonstrarem incapazes de tutelar os bens jurídicos relevantes.[1]

Quanto à natureza subsidiária do Direito Penal, vale ressaltar a reflexão do penalista Rogério Greco, em sua renomada obra Direito Penal do Equilíbrio:
A segunda vertente do princípio da intervenção mínima evidencia a chamada natureza subsidiária do Direito Penal, fazendo com que ele seja entendido como a ultima ratio de intervenção do Estado. 
Tal raciocínio se faz mister em uma visão minimalista do Direito Penal, haja vista que se os outros ramos do ordenamento jurídico demonstrarem que são fortes o suficiente na proteção de determinados bens, é preferível que tal proteção seja por eles levada a efeito, no lugar da drástica intervenção do Direito Penal, com todas as suas consequencias maléficas, a exemplo do efeito estigmatizante da pena, dos reflexos que uma condenação traz sobre a família do condenado, etc. [2]

Ainda:
Em muitas situações o Direito Administrativo demonstrará, inclusive, força superior ao próprio Direito Penal, dada a sua pronta eficácia. O poder de polícia, que é inerente ao Estado, faz com que o Direito Administrativo resolva situações conflituosas com muito mais rapidez do que o Direito Penal.[3]
E, máxime tais princípios, a conduta praticada pelo agente que possui arma de fogo com o registro vencido mostra-se materialmente atípica, eis que o comportamento do indivíduo não se reveste de gravidade a justificar a intervenção penal (excluído que está do âmbito de incidência típica), e inclusive já encontra suficiente resposta no âmbito administrativo.

Nesse sentido acenou o Superior Tribunal de Justiça no julgado paradigma ementado acima.

E em igual alinhamento, pouco tempo depois manifestou-se o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul acerca da matéria, em julgado pioneiro da Quarta Câmara Criminal, relatado pelo Desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, no qual, à unanimidade, foi reconhecida a atipicidade penal de tal conduta:
APELAÇÃO-CRIME. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM O REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE RECONHECIDA. O fato de o réu não ter renovado o registro da arma de fogo por si só não acarreta a incriminação. O Poder Público detém conhecimento da situação, devendo fiscalizar e aplicar sanções administrativas, pois o Direito Penal deve ser utilizado como ultima ratio na tutela de bens jurídicos, ante a insuficiência de proteção por outros ramos do Direito. Impositiva a absolvição. Apelo provido. Unânime. (Apelação Crime Nº 70061056461, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 16/10/2014)
E tal entendimento ganhou força no âmbito da Corte de Justiça Gaúcha nos últimos meses, podendo afirmar-se ser, ao menos, o entendimento amplamente predominante acerca da matéria. Nesse sentido:
APELAÇÃO-CRIME. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM O REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE RECONHECIDA. O fato de o réu não ter renovado o registro da arma de fogo, por si só, não acarreta a incriminação. O Poder Público detém conhecimento da situação, devendo fiscalizar e aplicar sanções administrativas, pois o Direito Penal deve ser utilizado como ultima ratio na tutela de bens jurídicos, ante a insuficiência de proteção por outros ramos do Direito. Impositiva a absolvição. Apelo provido, por maioria. (Apelação Crime Nº 70062851001, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 19/03/2015)
APELAÇÃO-CRIME. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÃO. ART. 14, CAPUT , DA LEI Nº 10.826/03. REGISTRO VENCIDO. CONDUTA ATÍPICA. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. ABSOLVIÇÃO. I - Não há que se falar em cerceamento de defesa, tendo em vista que as autoridades policiais não foram arroladas durante a fase pré-instrutória. II - A conduta de portar arma de fogo com a devida autorização do Sinarm sem, contudo, o registro da arma em dia, é infração meramente administrativa, descaracterizando a conduta típica do delito previsto no art. 14, da Lei nº 10.826/03. Precedente do STJ. RECURSO DEFENSIVO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70062608419, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 12/02/2015) 
LEI 10.826/03. ART. 12. POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Apreensão, em cumprimento a mandado de busca e apreensão, no interior da residência do denunciado, de 22 cartuchos, calibre 380, intactos, um coldre de couro, de cor preta, bem como uma pistola calibre 380, marca Taurus KQA48114." Autoria admitida pelo acusado. ATIPICIDADE. Arma com registro nos termos da Lei, ainda que vencido. Precedentes do STF e da Câmara que consideram atípica a conduta. Ademais, houve excesso no cumprimento do mandado de busca domiciliar, que investigava um furto, envolvendo terceira pessoa, com objetivo determinado, sem qualquer referência ao acusado e a armas de fogo. APELO DEFENSIVO PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70061953774, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 12/02/2015) 
APELAÇÃO CRIME. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. MANUTENÇÃO DO DECIDIR, PORÉM SOB FUNDAMENTO DIVERSO. ABOLITIO CRIMINIS. INAPLICABILIDADE. DESDE O DIA 1º.01.2010, QUANDO FINDO O PRAZO CONCEDIDO PELA LEI Nº 11.922/2009, O ATO DE POSSUIR E/OU MANTER SOB GUARDA ARMA DE FOGO, SEM O DEVIDO REGISTRO, TIPIFICA O DELITO DE POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO. DECRETO N.º 7.473/11 E PORTARIA Nº 797/2011. REGRAMENTOS QUE NÃO ESTENDERAM O PRAZO PARA A ENTREGA E/OU REGISTRO, UMA VEZ QUE POSSUEM HIERARQUIA INFERIOR À LEI QUE ESTABELECEU OS PRAZOS. ARMA, IN CASU, DEVIDAMENTE REGISTRADA, ESTANDO, PORÉM, VENCIDO O REGISTRO. MERA IRREGULARIDADE ADMINISTRATIVA. CONDUTA ATÍPICA. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO MINISTERIAL. (Apelação Crime Nº 70061535852, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 18/12/2014)

E às ponderações consignadas nos precedentes jurisprudenciais acima indicados cumpre acrescentar uma breve reflexão acerca das finalidades a que se propõe a incriminação das condutas relacionadas à posse e porte de armas de fogo, munições e acessórios.

Efetivamente, buscando-se a teleologia da Lei 10.826/03, tem-se que ao delimitar as várias condutas típicas nela previstas, visa-se proteger a incolumidade pública mediante o controle das armas de fogo existentes no país, bem como a restrição de sua circulação fora do âmbito de ciência e controle do Poder Público.

E na medida em que o agente possui o registro da arma de fogo (embora vencido) manifesta é a ciência dos órgãos responsáveis a respeito deste fato, não estando o agente agindo na clandestinidade, tampouco promovendo a circulação ilícita da arma de fogo, que está sob o pleno controle do Estado, mesmo sem a renovação da licença.

Logo, a conduta concretamente apreciada nos julgados citados carece de qualquer ofensividade ao bem jurídico tutelado, razão pela qual, igualmente, deve ser tida como penalmente atípica.

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[1] SILVA, Davi André Costa. Direito Penal - Parte Geral, 3.ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013.
[2] GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio, 4ªed. Niterói, RJ: Impetus, 2009.
[3] GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio, 4ªed. Niterói, RJ: Impetus, 2009.

Um comentário:

  1. Chama a atenção a aplicacão de atipicidade da conduta no caso do artigo 14. Abraço

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