Por Samir Oliveira, do Sul 21
O novo Código Penal que está sendo redigido por uma comissão de juristas nomeada pelo Senado está em fase final de elaboração. O texto deve ficar pronto no dia 25 de junho e traz avanços em temas que sequer eram pensados em 1940, quando o Código Penal brasileiro foi instituído pela ditadura de Getúlio Vargas.
Os 15 juristas que trabalham na matéria foram empossados pelo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), no dia 18 de outubro de 2011. Eles teriam, inicialmente, um prazo de 180 dias para terminar a proposta.
O grupo, coordenado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, realizou 22 reuniões até esta segunda-feira (4) e diversas audiências públicas nos estados. Agora, na etapa final dos trabalhos, alguns assuntos polêmicos ganham contornos mais nítidos e indicam que os juristas estão atentos às necessidades e aos problemas da sociedade brasileira de 2012 – que já não encontram parâmetros numa legislação imposta há mais de 70 anos.
O ministro Gilson Dipp reconhece que o ponto mais polêmico é o que trata da ampliação de situações nas quais o aborto pode ser realizado. Pelo código ainda vigente, a mulher só pode realizar o procedimento em caso de risco de vida ou se tiver sido estuprada.
Pela proposta da comissão de juristas, o aborto continua sendo crime, mas o leque de possibilidades legais para ele ser efetivado se amplia. O texto novo legaliza a possibilidade de aborto de fetos anencéfalos e permite que o procedimento seja realizado em qualquer caso até a 12ª semana da gravidez desde que a mulher não tenha condições de cuidar de uma criança.
Outro tema complexo decidido pela comissão é a regulamentação do uso individual de drogas. Pela proposta dos juristas, o usuário que portar uma pequena quantidade de substâncias tóxicas não será punido. O texto não estabelece a quantidade considerada “para consumo médio individual” e transfere para o Poder Executivo a tarefa de regular a dosagem.
O especialista em Segurança e Direitos Humanos, Marcos Rolim, acredita que a nova regra é um avanço em relação à reforma da Lei das Drogas feita em 2006 – quando se determinou que o usuário não iria mais preso, apenas o traficante. “Imaginava-se que as prisões de usuários iriam diminuir, mas o que houve foi o contrário, pois a conduta continuava tipificada como crime e não criamos na legislação uma quantidade de substância que se permita separar o que consumo e o que é venda”, explica.
Rolim diz que uma regulamentação clara sobre a permissão do consumo individual de drogas pode diminuir a arbitrariedade policial nas abordagens. “Hoje, se a polícia parar alguém de classe média dentro de um carro e verificar que essa pessoa está com 30 gramas de droga, vai considerar que é para consumo. Se for um pobre e negro com essa mesma quantidade, vai considerar que é para o tráfico”, compara.
“Essa discussão ainda levará muito tempo”, projeta especialista em Ciências Criminais
O professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS, Rodrigo Azevedo, acredita que o novo Código Penal não sairá tão cedo do papel ou corre risco de se desfigurar no Congresso Nacional. Isso porque assim que a comissão de juristas terminar a redação, o texto será submetido a votações na Câmara dos Deputados e no Senado. “Esse tipo de reforma possivelmente leve muito tempo. Os resultados acabam se perdendo no processo legislativo”, avalia.
Ele lamenta que o perfil conservador do Congresso possa barrar alguns avanços estabelecidos pelos juristas. “No Congresso, as bancadas religiosas apresentam muitas resistências e têm uma visão moralista em relação ao direito penal. Querem adequar o direito penal a uma ética e a uma moral religiosas”, observa.
Rodrigo Azevedo diz que o texto só irá prosperar se o governo federal utilizar seu capital político na defesa da proposta. “A comissão tem uma posição avançada e vanguardista. A aprovação vai depender muito do engajamento do governo, através do Ministério da Justiça”, aconselha.
O especialista em Segurança e Direitos Humanos, Marcos Rolim, também teme pelas mudanças que o texto pode vir a sofrer no Congresso Nacional. “As propostas da comissão, de uma maneira geral, são interessantes e abrem debates no país. Só receio que não tenhamos hoje no Congresso um clima para que possamos avançar. O Congresso tem se mostrado uma instituição incapaz de tomar decisões polêmicas. O que está sendo aprovado pelos juristas pode não permanecer ou ficar pior”, considera.
Para o diretor da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Adalberto Delgado, o produto final do novo Código Penal, sancionado pela Presidência da República, traduzirá a vontade geral da população. “A comissão precisa levar ao Congresso aquilo que vem retirando das audiências públicas e tensionar para que se levante o debate nas duas Casas. É um processo de construção, não enxergo desconfiguração”, diz o juiz.
Ele compra o contexto em que o novo código está sendo elaborado com a situação política do país durante a imposição da atual legislação. “Vejo um processo muito salutar de construção do novo código que não foi feito no passado. A legislação em vigor até hoje nos foi imposta, não passou por um debate democrático”, avalia.
Confira a síntese de algumas propostas já decididas pela comissão de juristas
Drogas
Caberá ao Poder Executivo regulamentar a quantidade de substância que uma pessoa poderá portar e manter sem que se considere tráfico. A quantidade da substância deve corresponder ao consumo médio individual de cada tipo de droga pelo período de cinco dias. A regulamentação dessa quantidade específica ficará a cargo de órgão administrativo de saúde pública, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O cultivo para consumo próprio também não será criminalizado. A presunção de consumo para uso pessoal é relativa. Isso significa que, mesmo portando quantidade de droga menor que a regulamentar, a pessoa poderá ser condenada por tráfico caso se comprove, por outros elementos, que a substância não se destinava ao seu uso pessoal.
Continua sendo crime o uso público e ostensivo de substâncias entorpecentes, assim como nas proximidades de escolas e na presença de crianças e adolescentes. O compartilhamento de droga eventual e sem objetivo de lucro, com pessoa do relacionamento do agente, também é punível, com pena entre seis meses e um ano mais multa.
Homofobia
A comissão aprovou alterações na Lei do Racismo para proibir também a discriminação por gênero. A proposta leva para o anteprojeto de revisão do Código Penal a criminalização da homofobia, prevendo, para este tipo de prática, as mesmas penas já existentes para a discriminação de raça ou de cor. Também é estipulado o crime de descriminação por procedência regional, o que poderá penalizar declarações de ódio contra nordestinos, por exemplo. Todos esses crimes ficariam no mesmo patamar do racismo, sendo considerados delitos inafiançáveis.
Aborto
Atualmente, a legislação permite que a mulher aborte apenas em caso de risco de vida para ela ou em caso de estupro. Pela proposta da comissão, o aborto continua sendo crime, mas poderá ser realizado em caso de gravidez de um anencéfalo ou até a 12ª semana de gestação, caso a mulher comprove que não tem condições de criar uma criança.
Tortura
Regulamentando tratados internacionais assinados pelo Brasil, o crime de tortura será inscrito no novo Código Penal como imprescritível, inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Outra hipótese prevista pela comissão é a ocorrência de suicídio da vítima em razão do sofrimento físico ou mental advindo dos atos de tortura. Nesse caso, a pena poderá ser idêntica à hipótese de morte culposa após a tortura – de oito a 20 anos. Se alguma autoridade tomar conhecimento do crime de tortura e não determinar as providências cabíveis, incidirá nas penas de um a quatro anos.
Enriquecimento ilícito
Atualmente, as punições são previstas apenas na esfera cível. Pela proposta da comissão, a pena prevista no novo Código Penal será de um a cinco anos de prisão e o confisco dos bens ilegalmente adquiridos. Mas as punições poderão ser ampliadas da metade a dois terços se houver a participação de laranjas.
Crimes eleitorais
Reduz os 85 tipos de crimes eleitorais existentes desde 1965 para apenas 14. Entre as condutas descriminalizadas está a chamada “boca de urna”, que passa a ser apenas um ilícito cível, e o ato de “furar a fila” da ordem de votação.
Já o uso eleitoral da máquina administrativa, pela proposta, terá a pena aumentada para dois a cinco anos de prisão, bem mais severa que a atual – de seis meses. A corrupção eleitoral ativa (entrega de uma vantagem para o eleitor) e a corrupção passiva receberam pena de um a quatro anos. Se o juiz constatar que o eleitor aceitou a vantagem em razão de extrema miserabilidade, poderá deixar de aplicar a pena (perdão judicial).
Celulares no presídio
Atualmente, o uso de celular em presídio é repreendido como falta grave do preso, não implicando acréscimo de pena. O código atual criminaliza apenas a facilitação da entrada do aparelho de comunicação nos presídios. A mudança proposta pela comissão altera o artigo 349-A para incluir como agente da conduta o preso que “utilizar, de forma não autorizada, aparelho de comunicação, de rádio ou similar, sem autorização legal em estabelecimento prisional”.
Animais
A comissão aprovou proposta que aumenta penas para crimes contra o meio ambiente, entre eles os maus-tratos a animais. A pena para esse delito passa a ser de prisão de um a quatro anos e multa. Nessa linha, o novo texto criminalizou o abandono e definiu que os maus-tratos podem render prisão de até seis anos, caso a conduta resulte na morte do animal. O tráfico de animais teve pena dobrada para dois anos.
Fonte: SUL 21, acesso em 09 de junho de 2012.
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